22 de abril de 2012

John Fante

   Há alguns anos atrás, quando ainda cursava Filosofia, conheci, na disciplina de Filosofia Clássica Alemã, um sujeito chamado José Daniel. Ele já era formado em Jornalismo e decidira voltar a estudar. O que eu achei curioso é que o Zé tinha um codinome! Um codinome! Para mim, isso era algo exclusivo de terroristas ou de integrantes de tropas especiais das forças armadas. Mas Zé tinha o seu: "John Fante".
   Barba rala, fumante, ar bonachão, John Fante colecionava jornais velhos. Tinha-os aos milhares, amarelados, não lidos e empilhados pelos cantos do apartamento. Sempre suspeitei que, um dia, Zé Daniel iria acabar morrendo em domicílio. Ou bem porque, eventualmente, uma bituca de cigarro iria cair perto demais de uma das pilhas de jornais dobrados e iniciar um incêndio de proporções catastróficas; ou bem porque a laje não suportaria o peso acumulado das notícias e traria todo o edifício abaixo.
   Mas o Santo é forte e, até onde eu sei, John Fante ainda vive.
   José Daniel escrevia contos. Um dia, presenteou-me com um livro de contos de Jorge Luís Borges traduzido por Carlos Nejar. O volume cheirava a maconha. Na ocasião, disse-me o que repetia sempre: "Precisamos escrever todos os dias, Komatsu, mesmo sem escrever todos os dias". Essa era a frase oracular de John Fante. Ele queria dizer que, mesmo que não escrevêssemos nem uma linha ao longo de uma semana ou mês, precisávamos observar o mundo, ler os jornais (novos ou velhos), ler os livros (novos ou velhos) e pensar sobre todas essas coisas como se fôssemos escrever todo santo dia sobre todas essas coisas.
   Achava aquilo um exagero de John Fante, um radicalismo, um extremismo típico de terroristas. John Fante era um fanático pelo pensamento diário e pela escrita diária... como se a salvação estivesse na constância do pensar. Talvez por isso tivesse um codinome! John Fante tinha, afinal, uma causa!
   Acontece que hoje, trabalhando na burocracia, começo a dar razão ao meu antigo e fervoroso colega. 
   Percebo, ao olhar minha própria vida e meu cotidiano no judiciário, que posso passar um dia inteiro sem pensar em uma única linha, ou mesmo uma única palavra criativa... posso atravessá-lo apenas repisando pensamento rotineiros, reproduzindo lugares comuns, carimbando em meu discurso idéias moldadas por outros. Esse dia, facilmente, pode se tornar dois dias, que podem se tornar três. Os dias, inadvertidamente tornam-se semanas. As semanas, para cumprir o calendário, transmutam-se em meses. Os meses deságuam em anos. Não em anos do calendário, mas em anos de minha vida.
   E, de repente, nada foi escrito. Nada foi pensado. E, de repente, John Fante, talvez, estivesse certo.
   Acredito que John Fante guardava os jornais para vigiar de perto os dias em que não havia pensado e os dias em que não havia escrito. John fante arquivava o tempo! O tempo que lhe havia passado por entre os dedos. Guardava-os para se assegurar que não deixaria uma vida inteira passar-lhe sem ter escrito... mesmo sem escrever. Esse tempo passado era tão opressor para John Fante que já lhe ocupava os espaços do apartamento, apertava-lhe o trânsito em sua própria casa.
   Nunca mais encontrei John Fante. Nunca mais tive um amigo com codinome, mas guardo comigo um pouco de sua doutrina.

P.S.: John Fante é o nome de um contista e romancista americano que viveu entre 1909 e 1983. Mas não é desse John Fante que falei aqui.