11 de abril de 2012

Mitologia Burocrática

   A mensagem, para existir, tem que ser emitida e, num momento posterior, precisa ser recebida. No meio desse caminho, ela precisa ser transmitida.
   Esse fenômeno, aparentemente trivial, possui um lugar tão importante na vida dos homens que gregos e romanos, em suas imortais mitologias, criaram deuses mensageiros. Os primeiros, tinham Hermes, os últimos, Mercúrio.
   A burocracia, ainda que laica, também tem suas mitologias.
   Quando um juiz, num despacho ou decisão, proclama: "notifique-se fulano", ou "proceda-se à entrega de tal documento", não é ele, magistrado, quem cruza os subúrbios da cidade e vai à casa da pessoa notificá-la ou entregar-lhe tal ou qual papel. Não. Quem o faz é a burocracia.
   Agora, a burocracia em si, enquanto mero conceito, não tem pernas ou boca para tanto. Mas ela é sagaz e cria os mitos de que carece.
   Existem aqueles servidores no judiciário que são os emissários da justiça, são suas pernas, bocas e ouvidos. Chamam-se Oficiais de Justiça.
   Diante de uma determinação como "notifique-se fulano", o oficial pega o mandado de notificação e vai até o endereço que consta no processo. Encontrando fulano, faz a leitura do conteúdo da notificação. "Entendeu que o senhor está notificado de tal e tal coisa?". "Sim". "Então, assine aqui no canto do documento, por favor". Depois, o oficial volta para a repartição e redige uma certidão, relatando o que disse a e o que ouviu de fulano.
   Se, por outro lado, esse emissário da justiça, não encontra fulano, mas fica sabendo que este se mudou, ou mesmo morreu, o oficial certifica que "ouviu dizer que..." ou "disseram-lhe que...", e portanto, não pôde cumprir a determinação judicial, pois a mensagem foi emitida, foi transmitida, mas não foi recebida.
   Através do Oficial, portanto, o Juiz fica sabendo o que foi oficialmente dito e o que foi oficialmente ouvido.
   Hoje, por uma dessas pequenas caridades burocráticas que quebram a repetição compassada do serviço, caiu-me nas mãos uma certidão muito curiosa de um Oficial de Justiça.
   Cabia-lhe, se bem me lembro, notificar um sujeito de alguma coisa.
   Chegando ao endereço, não encontrou quem queria, apenas a ex-sogra do rapaz, que contou-lhe a história mais desoladora que um Oficial poderia ouvir.
   Disse-lhe a senhora que o sujeito era surdo e mudo e que já há algum tempo mudara-se dali pois havia se separado de sua filha. E a filha? Também se mudara e há muito não entrava em contato. A filha também era surda e muda.
   A certidão do Oficial constava já três tentativas frustradas de notificação. Por três vezes o Oficial havia tentado transmitir a mensagem; por três vezes não pôde dizer nada e por três vezes não ouviu nada. Certificou esse servidor haver deixado um telefone para contato... acredito que sem grandes esperanças de ouvir ou dizer qualquer coisa.
   Fosse o Oficial de Justiça um cidadão grego ou um romano, haveria de sentir-se desamparado por seus deuses.