8 de abril de 2012

Wisława Szymborska

   Anteontem liberaram o conteúdo da 66a edição da Revista Piauí na internet. É uma revista física, de papel, que, depois de uns dias, por filantropia dos editores, tem todo o seu conteúdo franqueado na rede mundial de computadores, tablets e smartphones. Leio-a sempre com o tolerável atraso da generosidade alheia.
   Assim, ontem fiquei sabendo que no dia 1º de fevereiro morreu na Cracóvia uma poetisa polonesa, Wisława Szymborska. Não sei como se pronuncia o "l" com o tracinho transversal. Não sei como se pronuncia o sobrenome... muitas consoantes, muito poucas vogais. Nunca havia lido um poema de Wisława.
   A revista menciona também que, há um ano atrás, a Companhia das Letras publicou um livro com 44 poemas de Szymborska, traduzidos direto do polonês por Regina Przybycien.
   Eu não me interessaria muito mais pelo assunto - a matéria é bem completa e traz alguns poemas para conhecimento do leitor - não fosse o nome da tradutora "Regina Przybycien". Soou-me familiar. Já o tinha ouvido ou lido em algum lugar... mas o contexto era completamente diferente... não se referia a poesia, a poetas mortos ou traduções. Era algo menos distante, menos acadêmico, menos "suplemento cultural" de uma publicação qualquer.
   Não demorou muito, lembrei-me. Era o nome de uma amiga de minha mãe, de Curitiba. Durante os anos em que morei na fria capital devo tê-la visto algumas vezes em visitas na casa de meus pais. Fiquei feliz em saber que, apesar de não conhecer nada sobre a poetisa polonesa morta, conhecia algo acerca da tradutora.
   Resolvi procurar as traduções de Regina. Encontrei um poema sobre os objetos de um museu. Nele Wisława reflete que aqueles artefatos em exposição sobreviveram às pessoas que os utilizaram e que estas, ao contrário das relíquias à mostra, perderam-se no tempo. Quem quer que tenham sido, reis, guerreiros ou plebeus, perderam a competição da existência.
   Wisława, ainda viva, fecha o poema numa disputa ferrenha com um seu vestido - disputa que ela sabe perdida.
   Eu, diante da derrota certa e inevitável explicada nos versos traduzidos por Regina, seguirei batendo cabeça com a burocracia apenas em razão da necessidade imperiosa de seguir existindo, ainda que uma existência perecível. Nas palavras de Szymborska: "Quanto a mim, vou vivendo, acreditem". O museu de Wisława é a minha repartição pública.
   Tenho que me lembrar de ir para Curitiba, de comprar o livro e pegar uma dedicatória de Regina. De Szymborska não é mais possível. Ao menos, Regina sobreviveu a Wisława.

   Segue abaixo o poema:


Museu

Há pratos, mas falta apetite.
Há alianças, mas o amor recíproco se foi
há pelo menos trezentos anos.

Há um leque — onde os rubores?
Há espadas — onde a ira?
E o alaúde nem ressoa na hora sombria.

Por falta de eternidade
Juntaram dez mil velharias.
Um bedel bolorento tira um doce cochilo,
O bigode pendido sobre a vitrine.

Metais, argila, pluma de pássaro
Triunfam silenciosos no tempo.
Só dá risadinhas a presilha da jovem risonha do egito.

A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a luva.
A bota direita derrotou a perna.

Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.
Minha competição com o vestido continua.
E que teimosia a dele!
E como ele adoraria sobreviver!