4 de fevereiro de 2014

Um Samba Burocrático

   Logo que entrei na máquina burocrática do Poder Judiciário encantei-me com as palavras.
   Fiquei impressionado com a capacidade que o léxico jurídico tinha de mudar a realidade. "Cumpra-se", "Intime-se", "Defiro", "Indefiro".
   A publicação dessas expressões no Diário Oficial da União colocava em movimento a máquina e todos os envolvidos na demanda: oficiais de justiça, advogados, procuradores federais, peritos, escrivãos, etc. 
   Tinha a impressão de que encontrara o lugar que havia buscado por toda a minha vida; que buscara incessantemente na filosofia, na poesia, na literatura... um lugar onde as palavras eram capazes de mudar a vida das pessoas. Estava apaixonado.
   Parei de escrever por alguns meses, encantado com a nova descoberta, ingressei no curso de Direito e passei a tentar compreender essas palavras que me pareciam mágicas.
   Trabalhava diariamente na administração pública buscando entender como as expressões jurídicas eram capazes de alcançar o mundo.
   Aos poucos, pouparei os leitores das delongas, descobri que as palavras jurídicas são apenas carcaças, preenchidas por um poder que não emanam de si, mas do poder do Estado. São como fantoches, pedaços de pano, manipulados pelo marionetista.
   As expressões do judiciário não mudam o mundo. O que coloca a máquina em movimento é o Poder, a mão do Estado que, por acaso, o faz através da palavra escrita.
   Mas as palavras mesmo não têm valor algum no judiciário, são apenas a carcaça com a qual se reveste o Poder, são o trapo que cobrem o corpo, nada mais. E tal qual as palavras, também são trapos que  revestem o Poder, os seres quase inanimados que as escrevem, que as publicam e que as cumprem: servidores, juízes, tribunais...
   Os vocábulos jurídicos são um campo infértil para quem busca aquelas palavras capazes de mudar a realidade por si mesmas. As palavras jurídicas são tuteladas pelo Estado, desprovidas da autonomia da vontade; na terminologia do Direito, são incapazes, não são as palavras livres e senhoras de si que sempre busquei.
   Enganei-me por alguns meses. Em tempo, suponho, pois sempre há tempo, voltei-me ao campo fértil da literatura, da filosofia e da poesia, um pouco envergonhado por tê-las ignorado por causa de uma amante atraente, mas traiçoeira.
   Como diz o samba de Paulinho da Viola: "Se um dia, meu coração for consultado / Para saber se andou errado / Será difícil negar..."