O
mundo dos tribunais, das cortes, das secretarias judiciais têm uma
linguagem: A linguagem jurídica. O juridiquês.
Esse
jeito de falar típico do mundo forense é uma camisa de força, um
cabresto, que limita os movimentos do pensamento e exclui outras
formas de pensar.
A
linguagem jurídica, vejam só, determina como as pessoas devem fazer seus
pedidos ao Estado, determina como as pessoas devem responder ao que
lhes é perguntado, como, quando e onde devem agir caso não
concordem com uma injustiça, quanto tempo devem esperar diante de
uma ilegalidade e quando devem parar de reclamar. Toda forma de
expressão é pré-determinada pelo juridiquês.
Há
um jeito específico de dizer que sim, e um jeito específico de
dizer não. E se esse forma jurídica não for obedecida, a pessoa
não é ouvida, é solenemente ignorada.
A
linguagem jurídica só fala e só ouve a si mesma.
A
forma é tão rígida, tão engessada, tão narcisista que não
importa qual boca a fale… o advogado, o juiz, o promotor, o
delegado… é somente o juridiquês que está a repetir o próprio
discurso, encantado com o som da própria voz.
O
grito de injustiça só é ouvido se o volume for baixado, se a forma
da indignação for aparada, se a voz for domesticada no tom certo,
nos trejeitos, e se quem disser “Injustiça” já não seja a
pessoa que a sofreu, não seja a pessoa que clama, mas algum advogado, em terno, de acordo com as fórmulas da linguagem jurídica.
Só
então, a reclamação é ouvida. Então ela já não é mais um
grito. É um sufocamento.
A
linguagem jurídica despersonaliza o outro, tira a individualidade da
pessoa de quem se fala e retira a humanidade da pessoa que fala.
A
linguagem dos tribunais achata a multiplicidade do que é humano.
A
linguagem é a prisão dos indivíduos no mundo jurídico. Ao falar
aquela linguagem, o ser humano se institucionaliza, torna-se parte da
grande instituição judicial. Deixa de pensar com as suas palavras,
com as suas expressões, com seus sentimentos, com a sua história,
com o que lhe é próprio. Aliena-se em favor de uma linguagem que
não é sua.
Eu,
por exemplo, trabalho num cartório judicial no cerrado brasileiro há
quase dez anos. Todos os dias visto essa camisa de força e, oito
horas por dia, falo dentro dos estreitos limites do juridiquês.
Deixo que essa instituição invisível – a linguagem jurídica –
pense por mim.
Obedecer
às formas dessa linguagem – vestir essa camisa de força - é
obedecer as vontades e os despotismos dessa instituição.
Para
fugir desse sanatório, dessa linguagem que se repete e parece só
querer ouvir a si mesma, numa ladainha tediosa, é preciso inventar
uma outra língua.
Mas
inventar uma outra língua é inventar outros indivíduos, outros
mundos, outros valores, outras relações. É preciso inventar um
outro “eu” que fala; inventar o outro que ouve e compreende essa
nova língua.
Para
fugir do sanatório, do tédio, é preciso inventar uma loucura.
Há
nove anos preso no cativeiro do juridiquês, mês passado caiu-me nas
mãos um livro chamado “Triple Frontera Dreams”, escrito por
Douglas Diegues.
A
obra foi redigida em Portunhol Selvagem, uma linguagem sem regras
fixas, sem manual de redação oficial, emprestando sua gramática e
seu vocabulário do português, do espanhol, do “guarani
paraguayensis”, do italiano, sem seguir qualquer padrão senão o
desejo do corpo… a língua que o corpo deseja falar.
Logo
na apresentação do livro, o autor esclarece:
“Qualquer
kabrón, qualquer princesa, qualquer vagabundo puede fazer literatura
em portunhol selvagem, porque cada um tem ya um portunhol selvagem
seu, aún non lo sabiendo, escondido em seu corpo, y que jamais será
igual al mío”.
Ao
folhear as páginas, descobri que Douglas Diegues inventou não
apenas uma língua, mas uma cultura, um universo, uma sociedade
(des)organizada, com indivíduos que precisam daquela língua,
escondida em seus corpos, para se expressarem.
Os
homens do mundo da “Triple Frontera Dreams”, “los bugres de la
frontera”, desejam ardentemente “La Xe Sy” (Xe: mía; Sy: Mãe)…
essa mulher Se Xy… mas a desejam com um fervor somente expressável
em portunhol selvagem, com um vocabulário selvátiko.
As
mitologias da “Triple Frontera” também precisam ser narradas
nessa nova língua, para que evoquem a força de seus símbolos. "El
Xamán Milagroso", por exemplo, “tenía um pedazo de vidro nel cual
se reflejaba el álma de los indibíduos”. A origem das rãs e dos
sapos que coacham na “Triple Frontera” também são contadas em portunhol
selvagem: “Antigamente las ranas y los sapos eram pessoas y un día
atiraram tierra em la llúbia”…
Até
mesmo a poesia de Fernando Pessoa, na “Triple Frontera” precisa
ser traduzida ao portunhol selvagem, para ser inserida nesse novo
mundo inaugurado pela língua escondida no corpo:
“Quem
me diera oubir de alguém la voz humana
Que
confesasse non un pecado, mas uma infâmia;
Que
contara, non uma violênzia, mas una cobardia!”
O
corpo que fala em portunhol selvagem não é um corpo contido numa
camisa de força, não é um corpo atado por uma linguagem
institucional. Não. O corpo que fala em portunhol selvagem, a cada
momento, escolhe livremente o que e como falar e nos convida a sair
do sanatório, do tédio, da linguagem ofical:
-
“Non tengas miedo, non mordemos, dicen las yiyis (Yiyi: mujeres,
garotas) invitándome muy amables a bailar um par de temas. Com elas
aprendo nuebamente cómo se baila la cumbia, la kachaka e el
rockanrroll bajo la llubia negra. Y qué bien bailan la cumbia, la
kachaka y el rockanrroll estas hermosas mongólikas!”
O
portunhol selvagem é antes de tudo uma crítica. Uma crítica à
maneira institucionalizada de pensarmos, uma crítica à nossa
passiva alienação em relação aos ditames da linguagem, uma
crítica ao tédio a que nos submetemos ao nos amarramos nessa camisa
de força da língua institucional.
O
portunhol selvagem é a proposta de uma nova ética, de uma nova postura perante a linguagem e perante a vida.
O
livro de Douglas Diegues termina com um poema intitulado “El
sentido de la vida según las yiyis Guaraní & Nivalkê”, que
nos ensina:
“Venimos
a este mundo
para
ser feliz.
Venimos
a este mundo
para
nos maravilhar
(…)
Non
venimos a este mundo
para
ficar com uma feroz kara de kulo
y
después morrer de tédio
(...)”
O
portunhol selvagem, por fim, é um convite para descobrirmos a
linguagem sem regras e libertadora escondida em nossos corpos, esse
seu idioma, caro leitor, “que jamais será igual al mio”.
Saiamos
das camisas de força que nos asfixiam com o tédio institucional de
linguagens manualescas, oficiais, higienizadas. Respiremos um pouco o
ar da “Triple Frontera Dreams”.
Abrazo!