17 de agosto de 2017

Portunhol Selvagem

     O mundo dos tribunais, das cortes, das secretarias judiciais têm uma linguagem: A linguagem jurídica. O juridiquês.

     Esse jeito de falar típico do mundo forense é uma camisa de força, um cabresto, que limita os movimentos do pensamento e exclui outras formas de pensar.

     A linguagem jurídica, vejam só, determina como as pessoas devem fazer seus pedidos ao Estado, determina como as pessoas devem responder ao que lhes é perguntado, como, quando e onde devem agir caso não concordem com uma injustiça, quanto tempo devem esperar diante de uma ilegalidade e quando devem parar de reclamar. Toda forma de expressão é pré-determinada pelo juridiquês.

     Há um jeito específico de dizer que sim, e um jeito específico de dizer não. E se esse forma jurídica não for obedecida, a pessoa não é ouvida, é solenemente ignorada.

     A linguagem jurídica só fala e só ouve a si mesma.

     A forma é tão rígida, tão engessada, tão narcisista que não importa qual boca a fale… o advogado, o juiz, o promotor, o delegado… é somente o juridiquês que está a repetir o próprio discurso, encantado com o som da própria voz.

     O grito de injustiça só é ouvido se o volume for baixado, se a forma da indignação for aparada, se a voz for domesticada no tom certo, nos trejeitos, e se quem disser “Injustiça” já não seja a pessoa que a sofreu, não seja a pessoa que clama, mas algum advogado, em terno, de acordo com as fórmulas da linguagem jurídica.

     Só então, a reclamação é ouvida. Então ela já não é mais um grito. É um sufocamento.

     A linguagem jurídica despersonaliza o outro, tira a individualidade da pessoa de quem se fala e retira a humanidade da pessoa que fala.

     A linguagem dos tribunais achata a multiplicidade do que é humano.

     A linguagem é a prisão dos indivíduos no mundo jurídico. Ao falar aquela linguagem, o ser humano se institucionaliza, torna-se parte da grande instituição judicial. Deixa de pensar com as suas palavras, com as suas expressões, com seus sentimentos, com a sua história, com o que lhe é próprio. Aliena-se em favor de uma linguagem que não é sua.

     Eu, por exemplo, trabalho num cartório judicial no cerrado brasileiro há quase dez anos. Todos os dias visto essa camisa de força e, oito horas por dia, falo dentro dos estreitos limites do juridiquês. Deixo que essa instituição invisível – a linguagem jurídica – pense por mim.     

     Obedecer às formas dessa linguagem – vestir essa camisa de força - é obedecer as vontades e os despotismos dessa instituição.

     Para fugir desse sanatório, dessa linguagem que se repete e parece só querer ouvir a si mesma, numa ladainha tediosa, é preciso inventar uma outra língua.

     Mas inventar uma outra língua é inventar outros indivíduos, outros mundos, outros valores, outras relações. É preciso inventar um outro “eu” que fala; inventar o outro que ouve e compreende essa nova língua.

     Para fugir do sanatório, do tédio, é preciso inventar uma loucura.

     Há nove anos preso no cativeiro do juridiquês, mês passado caiu-me nas mãos um livro chamado “Triple Frontera Dreams”, escrito por Douglas Diegues.

     A obra foi redigida em Portunhol Selvagem, uma linguagem sem regras fixas, sem manual de redação oficial, emprestando sua gramática e seu vocabulário do português, do espanhol, do “guarani paraguayensis”, do italiano, sem seguir qualquer padrão senão o desejo do corpo… a língua que o corpo deseja falar.

     Logo na apresentação do livro, o autor esclarece:

     “Qualquer kabrón, qualquer princesa, qualquer vagabundo puede fazer literatura em portunhol selvagem, porque cada um tem ya um portunhol selvagem seu, aún non lo sabiendo, escondido em seu corpo, y que jamais será igual al mío”.

     Ao folhear as páginas, descobri que Douglas Diegues inventou não apenas uma língua, mas uma cultura, um universo, uma sociedade (des)organizada, com indivíduos que precisam daquela língua, escondida em seus corpos, para se expressarem.

     Os homens do mundo da “Triple Frontera Dreams”, “los bugres de la frontera”, desejam ardentemente “La Xe Sy” (Xe: mía; Sy: Mãe)… essa mulher Se Xy… mas a desejam com um fervor somente expressável em portunhol selvagem, com um vocabulário selvátiko.

     As mitologias da “Triple Frontera” também precisam ser narradas nessa nova língua, para que evoquem a força de seus símbolos. "El Xamán Milagroso", por exemplo, “tenía um pedazo de vidro nel cual se reflejaba el álma de los indibíduos”. A origem das rãs e dos sapos que coacham na “Triple Frontera” também são contadas em portunhol selvagem: “Antigamente las ranas y los sapos eram pessoas y un día atiraram tierra em la llúbia”…

     Até mesmo a poesia de Fernando Pessoa, na “Triple Frontera” precisa ser traduzida ao portunhol selvagem, para ser inserida nesse novo mundo inaugurado pela língua escondida no corpo:

“Quem me diera oubir de alguém la voz humana
Que confesasse non un pecado, mas uma infâmia;
Que contara, non uma violênzia, mas una cobardia!”

     O corpo que fala em portunhol selvagem não é um corpo contido numa camisa de força, não é um corpo atado por uma linguagem institucional. Não. O corpo que fala em portunhol selvagem, a cada momento, escolhe livremente o que e como falar e nos convida a sair do sanatório, do tédio, da linguagem ofical:

     - “Non tengas miedo, non mordemos, dicen las yiyis (Yiyi: mujeres, garotas) invitándome muy amables a bailar um par de temas. Com elas aprendo nuebamente cómo se baila la cumbia, la kachaka e el rockanrroll bajo la llubia negra. Y qué bien bailan la cumbia, la kachaka y el rockanrroll estas hermosas mongólikas!”

     O portunhol selvagem é antes de tudo uma crítica. Uma crítica à maneira institucionalizada de pensarmos, uma crítica à nossa passiva alienação em relação aos ditames da linguagem, uma crítica ao tédio a que nos submetemos ao nos amarramos nessa camisa de força da língua institucional.

     O portunhol selvagem é a proposta de uma nova ética, de uma nova postura perante a linguagem e perante a vida.

     O livro de Douglas Diegues termina com um poema intitulado “El sentido de la vida según las yiyis Guaraní & Nivalkê”, que nos ensina:

“Venimos a este mundo
para ser feliz.
Venimos a este mundo
para nos maravilhar
(…)
Non venimos a este mundo
para ficar com uma feroz kara de kulo
y después morrer de tédio
(...)”

     O portunhol selvagem, por fim, é um convite para descobrirmos a linguagem sem regras e libertadora escondida em nossos corpos, esse seu idioma, caro leitor, “que jamais será igual al mio”.

     Saiamos das camisas de força que nos asfixiam com o tédio institucional de linguagens manualescas, oficiais, higienizadas. Respiremos um pouco o ar da “Triple Frontera Dreams”.

         Abrazo!