No raso do rio, onde a água é tão fina e transparente que parece
ser só o ar com um pouco mais de visco, brilha mergulhado um seixo;
não maior que uma uva.
É um brilho como o da pele de rã, um brilho orgânico, de vísceras,
como o do olho que se enche de lágrimas… é esse brilho das coisas
vivas, só que recobrindo uma pedra.
Com o dedo médio e o polegar, pinço o seixo do leito do rio. A água
escorre pelas pontas dos dedos e pela pedra. Por um instante a rocha
está viva em minha mão e me olha. O brilho vivo que quase fazia o
seixo pulsar logo se evapora. Resta entre meus dedos o minério seco.
Penso em descrever aos meus amigos, sentados mais acima na margem do
rio, o relampejo de vida que vi cobrindo o seixo. Chamo-os para a
beira da água, mas estão entretidos com araçás recém-apanhados.
Tem uns troços difíceis de explicar assim, de longe.
Pois outro dia indicaram-me um livro, “Breu”, escrito por Geraldo
Maia. Isso faz mais de quatro meses já. Li a coisa toda e, no final,
senti-me, de novo, à beira rio, com um seixo na mão.
Há meses venho pensando num jeito de lhes falar desse livro. Ocorre
que falar do livro sem transcrever poema por poema é como mostrar
uma pedra seca, sem brilho, e tentar explicar-lhes assim, de longe, o instante em que
o minério quase pulsou com vida.
Larguei mão de Geraldo Maia, do “Breu”, de tentar convencer
alguém de ler o raio do livro.
E no entanto, anteontem, passando uma calça social antes de ir para
o trabalho, cuidando para manter o friso numa das pernas, ocorreu-me
uma caraminhola. Uma caraminhola que não é capaz de descrever o
brilho no seixo mergulhado, mas seve como convite para que venham
comigo à beira do rio.
Eis a caraminhola:
Vai que a vida é um tecido que vem com um vinco. E esse vinco é a
verdade… não “A Verdade” … mas uma verdade, ao menos. Então
o tecido da vida, como a perna duma calça social, vem com um
riscado. Vem com a vida essa dobra cindindo o certo e o errado, o
justo e o injusto, o bom e o mau, o belo e o feio, vem o medo de um
passo em falso, o medo de errar, a indignação perante o injusto, a
culpa… E assim, vincada, vai se levando a vida.
Como uma passadeira, a ferro quente, a gente vai sempre enfatizando
esse friso no tecido da realidade. Há um cuidado, um esmero, em
marcar com exatidão o vinco.
Agora, de quando em quando, de se usar a vida, o vinco se desfaz. Um
pouco constrangidos, nos pegamos usando uma pano largo, solto,
desaprumado, como se a vida não fosse o tecido, a calça, mas o
vinco que nela metemos.
Esse uso do pano da vida nos desalinha… E de quando em vez nos
vemos órfãos do riscado que divide o certo e o errado, o bom e o mau,
o belo e o feio, o justo e o injusto. Despidos da linha moral,
estética, jurídica, que nos dava o alinho na vida, cobertos por um
pano surrado, sem riscado, maltrapilhos… sequer sabemos se o que
nos veste pode ser chamado de vida. Pela falta de uma linha, não
sabemos como agir, como reagir, tomados, a cada ato, de sentimentos
opostos, culpa, prazer, orgulho, vergonha, vontade, dúvida, certeza…
as coisas parecem se imiscuir pela falta de um friso.
Então tratamos logo de meter, a ferro, nesse tecido um outro vinco, seja onde
for, mas que trace as divisas de uma nova vida: em que tenha um certo
e um errado, separados com clareza.
Entre uma vida e outra há esse instante sem riscado.
Na figura budista mediando a aceitação irrefletida de que uma
montanha é só uma montanha e a percepção sutil de que uma
montanha é só uma montanha, há um instante tortuoso e perturbador
em que uma montanha deixa de ser uma montanha.
Entre uma vida e outra há um breu… e esse breu pode durar dias,
meses, anos, uma vida, ou mais.
Agora, como lhes contar da escuridão do breu? Como lhes contar como
é viver nessa escuridão sem divisas, sem riscado?
Porque as palavras não fazem parte do “Breu”, elas fazem parte
da vida. As palavras, essas ferramentas impróprias com as quais tem
que lidar o poeta estão encharcadas de vida, de certo e errado, de
belo e feio, de justo e injusto… As palavras vem riscadas, já
nascem com um vinco feito a ferro quente.
Nos versos de Geraldo, não…. nos poemas que tramam o "Breu" de |Geraldo as palavras vão perdendo o vinco, o
poeta nos pega pelas mãos e as conduz até o tecido da vida,
convidando-nos a senti-la, convidando-nos a acariciar um tecido
surrado pelo uso, convidando-nos a sentir um pano em que o vinco se
desfez.
(...)
não
há
minúcia
microscópica
que
decifre
os
mistérios insondáveis
da
alma humana.
Rio
caudaloso:
quanto
mais se perscruta,
mais
turvas
as
águas
se
tornam.
Geraldo Maia, em seu livro de poemas, nos conduz, verso a verso, para
esse instante, para o seu “Breu”, para a sua roda de Samsara.
Lendo o "Breu" de Geraldo nos damos conta do quanto, sem perceber, o que passou a nos vestir deixou de ser a vida... para ser um mero friso, feito a ferro quente, cindindo o que é certo e errado, justo e injusto, bom e mau... Lendo o "Breu" nos damos conta de que a vida é um tecido e não um vinco.
Venham para beira do rio. Quero lhes mostrar um seixo que parece
vivo.