22 de julho de 2018

Breu


     No raso do rio, onde a água é tão fina e transparente que parece ser só o ar com um pouco mais de visco, brilha mergulhado um seixo; não maior que uma uva.

    É um brilho como o da pele de rã, um brilho orgânico, de vísceras, como o do olho que se enche de lágrimas… é esse brilho das coisas vivas, só que recobrindo uma pedra.

    Com o dedo médio e o polegar, pinço o seixo do leito do rio. A água escorre pelas pontas dos dedos e pela pedra. Por um instante a rocha está viva em minha mão e me olha. O brilho vivo que quase fazia o seixo pulsar logo se evapora. Resta entre meus dedos o minério seco.

    Penso em descrever aos meus amigos, sentados mais acima na margem do rio, o relampejo de vida que vi cobrindo o seixo. Chamo-os para a beira da água, mas estão entretidos com araçás recém-apanhados. Tem uns troços difíceis de explicar assim, de longe.

    Pois outro dia indicaram-me um livro, “Breu”, escrito por Geraldo Maia. Isso faz mais de quatro meses já. Li a coisa toda e, no final, senti-me, de novo, à beira rio, com um seixo na mão.

    Há meses venho pensando num jeito de lhes falar desse livro. Ocorre que falar do livro sem transcrever poema por poema é como mostrar uma pedra seca, sem brilho, e tentar explicar-lhes assim, de longe, o instante em que o minério quase pulsou com vida.

    Larguei mão de Geraldo Maia, do “Breu”, de tentar convencer alguém de ler o raio do livro.

    E no entanto, anteontem, passando uma calça social antes de ir para o trabalho, cuidando para manter o friso numa das pernas, ocorreu-me uma caraminhola. Uma caraminhola que não é capaz de descrever o brilho no seixo mergulhado, mas seve como convite para que venham comigo à beira do rio.

    Eis a caraminhola:

    Vai que a vida é um tecido que vem com um vinco. E esse vinco é a verdade… não “A Verdade” … mas uma verdade, ao menos. Então o tecido da vida, como a perna duma calça social, vem com um riscado. Vem com a vida essa dobra cindindo o certo e o errado, o justo e o injusto, o bom e o mau, o belo e o feio, vem o medo de um passo em falso, o medo de errar, a indignação perante o injusto, a culpa… E assim, vincada, vai se levando a vida.

    Como uma passadeira, a ferro quente, a gente vai sempre enfatizando esse friso no tecido da realidade. Há um cuidado, um esmero, em marcar com exatidão o vinco.

    Agora, de quando em quando, de se usar a vida, o vinco se desfaz. Um pouco constrangidos, nos pegamos usando uma pano largo, solto, desaprumado, como se a vida não fosse o tecido, a calça, mas o vinco que nela metemos.

    Esse uso do pano da vida nos desalinha… E de quando em vez nos vemos órfãos do riscado que divide o certo e o errado, o bom e o mau, o belo e o feio, o justo e o injusto. Despidos da linha moral, estética, jurídica, que nos dava o alinho na vida, cobertos por um pano surrado, sem riscado, maltrapilhos… sequer sabemos se o que nos veste pode ser chamado de vida. Pela falta de uma linha, não sabemos como agir, como reagir, tomados, a cada ato, de sentimentos opostos, culpa, prazer, orgulho, vergonha, vontade, dúvida, certeza… as coisas parecem se imiscuir pela falta de um friso.

    Então tratamos logo de meter, a ferro, nesse tecido um outro vinco, seja onde for, mas que trace as divisas de uma nova vida: em que tenha um certo e um errado, separados com clareza.

    Entre uma vida e outra há esse instante sem riscado.

    Na figura budista mediando a aceitação irrefletida de que uma montanha é só uma montanha e a percepção sutil de que uma montanha é só uma montanha, há um instante tortuoso e perturbador em que uma montanha deixa de ser uma montanha.

    Entre uma vida e outra há um breu… e esse breu pode durar dias, meses, anos, uma vida, ou mais.

    Agora, como lhes contar da escuridão do breu? Como lhes contar como é viver nessa escuridão sem divisas, sem riscado?

    Porque as palavras não fazem parte do “Breu”, elas fazem parte da vida. As palavras, essas ferramentas impróprias com as quais tem que lidar o poeta estão encharcadas de vida, de certo e errado, de belo e feio, de justo e injusto… As palavras vem riscadas, já nascem com um vinco feito a ferro quente.

    Nos versos de Geraldo, não…. nos poemas que tramam o "Breu" de |Geraldo as palavras vão perdendo o vinco, o poeta nos pega pelas mãos e as conduz até o tecido da vida, convidando-nos a senti-la, convidando-nos a acariciar um tecido surrado pelo uso, convidando-nos a sentir um pano em que o vinco se desfez.

(...)
não há
minúcia microscópica
que decifre
os mistérios insondáveis
da alma humana.
Rio caudaloso:
quanto mais se perscruta,
mais turvas
as águas
se tornam.

    Geraldo Maia, em seu livro de poemas, nos conduz, verso a verso, para esse instante, para o seu “Breu”, para a sua roda de Samsara.

     Lendo o "Breu" de Geraldo nos damos conta do quanto, sem perceber, o que passou a nos vestir deixou de ser a vida... para ser um mero friso, feito a ferro quente, cindindo o que é certo e errado, justo e injusto, bom e mau... Lendo o "Breu" nos damos conta de que a vida é um tecido e não um vinco.

      Venham para beira do rio. Quero lhes mostrar um seixo que parece vivo.