5 de agosto de 2018

Inquieta Calma


     Corumbá. Fronteira seca entre o Brasil e a Bolívia. Quarenta graus Celsius.

     Há tempos não pensava em Corumbá. E, no entanto, hoje ela está de novo em minha memória, anunciada como uma milonga de Borges… que também há tempos não lia:

Venga una historia de ayer            Venha uma história antiga
que apreciarán los más lerdos;      Que mesmo os mais lerdos apreciarão;
el destino no hace acuerdos           o destino não faz concessões
y nadie se lo reproche                     e ninguém o censura
ya estoy viendo que esta noche       Já vejo que esta noite
vienen del Sur los recuerdos.          Vêm do Sul as lembranças.

     Na feira da cidade, desta que me recordo, as culturas se misturam. Sob as lonas azuis, laranjadas e amarelas das barracas - estufas multicoloridas - vendem-se discos piratas de bandas brasileiras, bolivianas e paraguaias. Cópias dos últimos lançamentos de Hollywood são ofertadas com as vozes de Tom Cruise e Meryl Streep dubladas em espanhol ou português. Os vendedores – de ambos lados da fronteira – carregam em suas pochetes maços de reais, dólares e bolivianos surrados, suados, comem chipa e salteñas. Bebem tereré.

     As moscas circulam pousando sobre produtos e alimentos. Impossível saber se são bolivianas ou brasileiras.

     Percorrendo as vias entre as barracas vê-se, aqui e ali, televisões ligadas, algumas sintonizadas na Rede Globo ou no SBT, outras em algum canal boliviano; eventualmente ouve-se um aparelho transmitindo a programação árabe da Al-Jazeera.

     Vebdedores e compradores, sob o filtro azul, laranja e amarelo das lonas, não se olham. O diálogo “Quanto custa?”; “Quinze reais (ou quince reales)”, se dá com o dono da barraca mantendo os olhos na TV e o consumidor segurando o produto, olhando ao redor da loja. O pagamento ou a desistência da compra, parecido. Um conta o dinheiro, o outro confere o troco. Um deixa o produto sobre a mesa improvisada e se vai; o outro rearruma as bugigangas expostas. Sem uma só troca de olhares.

     A fronteira entre os homens, como a geográfica, é seca.

     Os seres que habitam essa linha invisível no limite do familiar são quietos.

     No limiar do território nacional, os homens têm, por vezes, traços físicos comuns, transitam pelas mesmas ruas, comem nos mesmos restaurantes, bebem nos mesmos bares, manuseiam o mesmo dinheiro, mas sabem que em algo fundamental diferem.

     De longe, os corumbaenses e os bolivianos reparam um nos outros, mas quando essa distância diminui, os olhares se desviam. Tudo sem um pio.

     Agora, essa quietude não vem de almas tranquilas. Não.

     Onde os países se encontram, o silêncio vem de uma eterna desconfiança, do contato rotineiro com o estranho.

     Nunca se sabe ao certo de que lado se está, quem está ao seu lado.

     Ao falar com um homem ou uma mulher da fronteira, você nota que cada frase é antecedida por um longo silêncio. Nessa pausa, em que lhe miram de soslaio e depois olham para dentro de si próprios, quase é possível ouvir a conversa interna que o fronteiriço tem consigo mesmo: “O que ele quer comigo? Por que me dirige a palavra? Se eu responder, o que ele irá pensar?”.

     Então vem uma resposta curta, lacônica, que mais esconde que revela. Estar perto desse outro revolve em nosso espírito uma cautelosa inquietação.

     O silêncio da fronteira é uma espera, uma ansiosa espera pelo encontro inevitável com o que é estrangeiro. O silêncio é uma defesa.

     Na fronteira, não temos certeza se seremos compreendidos. Quem somos é constantemente ameaçado pela incompreensão de quem nos é estranho. Há na fronteira uma inquieta calma.

     Há tempos não pensava em Corumbá, em seu calor insuportável, no tempo em que vivi essa silenciosa ansiedade ao lado de bolivianos e corumbaenses. Há quase dez anos me mudei de lá. Nunca mais voltei.

     No entanto, outro dia fui a uma apresentação de músicos que exploravam os ritmos da fronteira. Pela primeira vez em minha vida ouvi uma milonga, com seus acordes graves e sua sonoridade quase trágica. Pela primeira vez ouvi o ritmo que, por certo, imaginou Borges ao escrever sua “Milonga de dos Hermanos”. Aquela música que jamais eu ouvira, proporcionou-me um reencontro com o poema que li pela primeira vez há tanto tempo. Esse poema, que até então tinha apenas uma certa cadência de rimas, passou a ter uma melodia e uma harmonia.

     Nesse mesmo dia da milonga, ouvi também uma canção que me levou de volta às ruas de Corumbá e aos olhares fronteiriços e silenciosos. Senti mais uma vez, depois de dez anos, o calor debaixo das tendas e quase pude ver a expressão de inquietude nos rostos daquelas pessoas que, em silêncio, nunca chegaram a atravessar a fronteira seca que nos separava.

        Ao ouvir a canção, senti minha própria inquietude.

     Esse texto é uma forma de agradecimento aos músicos que me proporcionaram esses dois reencontros.

     A letra, escrita por Victoria Saavedra e Mateus Porto dizia:

me veo asi…
me veo pasando el tiempo en eterna ansiedad
cubriendo el silencio com facilidad
disfarzando el rostro de inquieta calma (…)

parece que pasa el tiempo y nada va a pasar
esta parsimonia y tal sobriedad
me voy descubriendo em inquieta calma”.

     Se quiserem ouvir o que eu ouvi na voz de Thamires Tannous (a canção começa em 15:52):