9 de outubro de 2018

Segundo Turno

     Nós, por vezes e por comodidade, temos o hábito de imaginar o céu como um lugar etéreo, imaterial, que se abre em seu esplendor aos justos.

     Emannuel Swedenborg, filósofo sueco, vai por outra vereda; propõe um Éden complexo, com problemas científicos, filosóficos e teológicos a cada esquina.

     O desencarnado que chegasse ao firmamento de Swedenborg estaria bem arranjado com um paraíso incompreensível diante do nariz, eivado de questões espinhosas de toda ordem… Esse céu nórdico não é um céu dado por Deus, assim, de mão beijada, de lambuja. Não, não. É uma realidade que precisa ser primeiro compreendida, para só então poder ser vivida.

     Chega a ser frustrante esse Além cheio de complicações imaginado pelo filósofo.

     O paraíso de Swedenborg é por demais trabalhoso.

     Mas é justamente esse jeito de pensar que me interessa aqui, nesse texto eleitoral.

     No idioma sueco há uma palavra sem tradução precisa para o Português: Trygghet.

     Uma possível versão para nosso léxico tupiniquim seria “segurança”.

     Mas essa tradução deixa um tanto a desejar; isso porque a ideia de segurança no Brasil, principalmente nos dias de hoje, está associada à proteção contra uma ameaça.

     Estou seguro se tenho uma arma de fogo para afugentar ou matar um bandido que viole meu patrimônio, ou minha integridade física. Estou seguro se for reduzida a maioridade penal e o adolescente criminoso puder ser encarcerado desde logo, afastado de onde habito, de onde transito. Estou seguro se nos lugares que frequento só seja permitida a entrada de pessoas iguais a mim. Estou seguro se não estiver exposto a ideias, crenças e comportamentos com os quais não concordo, ou os quais eu desconheça.

     Por trás dessa ideia de segurança há, latejante, o desassossego, a inquietação, a frustração, a raiva de não poder dar cabo do sentimento de medo ouriçado por essas coisas que restringem o meu agir e estão por aí, à solta, ameaçadoras.

     Essa ideia de segurança, dessa segurança que afasta o desconhecido, está no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, com 46% dos votos dos brasileiros.

     Mas essa “segurança” não dá conta da expressão sueca Trygghet.

     Não. Segurança não é bem a palavra.

     A “segurança” nórdica não orbita o medo.

     A “segurança” do país de Swedenborg é mais complexa, como o próprio firmamento imaginado pelo filósofo. A palavra Trygghet abarca outros sentimentos, como a sensação de pertencimento, a sensação de confiança de cada ser humano no mundo em que habita, a sensação de que o indivíduo será acolhido pela sua comunidade e que o seu vizinho, seja ele quem for, como ame e de onde venha, também terá tal atenção.

     Trygghet, a “segurança” no idioma sueco, não é construída com armas nas mãos de civis, não é construída com prisões (físicas ou culturais), não é construída com a censura de ideias. Trygghet é uma sensação de segurança que inclui e não afasta.

     É um caminho mais longo e trabalhoso, como o paraíso de Swedenborg.

     Esse tipo de segurança passa, por exemplo, pelo reconhecimento de que a cultura negra, viva e mantida nas comunidades quilombolas se mede pela importância de sua tradição oral, de seus hábitos e costumes, de sua história e não pela “arroba”.

     Essa segurança da expressão sueca implica em reconhecer a relevância do agronegócio na economia do país, mas regular a produção, o uso de pesticidas, combater a utilização de trabalho escravo, demarcar a posse da comunidade indígena sobre a terra, fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental, para que outros seres humanos não sejam prejudicados no processo produtivo.

     Esse outro conceito de segurança, alheio ao nosso Português, exige que reconheçamos que o projeto de erradicação da fome no país é medida fundamental para conferir o mínimo de dignidade a outros brasileiros, e não “assistencialismo”, no sentido pejorativo que a palavra assumiu nos últimos anos.

     A ideia de um Trygghet só é possível se nós reconhecermos que a diversidade (de gênero, de cor, de crença) existe e deve ser respeitada, e que para ser respeitada precisa ser conhecida, e que para ser conhecida precisa ser ensinada e amparada pelo Estado, pela Lei.

     Essa segurança mais ampla implica em reconhecer que existem diferentes configurações familiares, algumas compostas por avós criando netos, outras por casais homossexuais com filhos e que todas essas famílias merecem o reconhecimento e a proteção do Estado.

     Esse conceito de segurança sueco não torna o indivíduo refém de seus medos, não o recolhe em redutos cada vez mais estreitos. E só assim a segurança ganha a forma de liberdade.

     Para ser livre, para estar seguro segundo essa palavra estrangeira, Trygghet, eu não tenho que me proteger do outro, mas me tornar responsável pelo bem comum. É mais complexo, é mais trabalhoso, envolve entender o que é diferente, e não afastá-lo.

     Tal segurança não se alcança pelo discurso de um messias, mas pelo gradual, plural e por vezes contraditório discurso democrático. O estranho, para ser compreendido, precisa falar e ser ouvido, não ser silenciado.

     Esse caminho é mais longo. Chega a ser frustrante, como o paraíso de Swedenborg, essa “segurança” cheia de complicações, que não pode ser resolvida na bala e precisa ser construída por todos.

      Não há atalhos para a democracia. Não há atalhos para esse tipo de segurança mais ampla e libertadora. Como não há atalhos na  filosofia de Swedenborg.

     Nesses tempos de indignação, não sei se é um caminho que estamos dispostos a trilhar.

     E, no entanto, apesar de todas as dificuldades que envolvem essa ideia – Trygghet –, ela também está no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, com Fernando Haddad, Manuela vice, Guilherme Boulos, Ciro Gomes e, espero, Marina Silva, Henrique Meirelles, Geraldo Alckmin e as demais forças democráticas desse País.

     No segundo turno, o voto é 13. Confirma.